domingo, janeiro 09, 2011

Empregada de Limpeza

empregada que limpas
o pó na escuridão soturna do
fim do dia do trabalho dos outros
- ou será manhã ainda por clarear? -
o que resta afinal de tudo
o que acontece nos escritórios
senão fios desligados
fios desconexos de uma realidade ilusória

passa um pano rápido por sobre
todo o desgosto de não sabermos quem somos
todo o desgosto de não sabermos o que
se passa pelos lugares paralelos ao coração;
um pano rápido, de olhos fechados
que queimam ao ardor dos químicos
puxados a spray pela força
reumática dos teus dedos gastos

sombras mexem-se
no ambiente delgado por entre as mesas
sem dizerem nada umas às outras
e de dia é tão diferente
ou talvez de dia seja também assim,
colegas da mesma função absurda,
mas é ainda mais absurda a função
de limpar o posto de trabalho absurdo dos outros

empregada de limpeza
que passas o pulso de borracha pela fronte cansada,
com os teus olhos negros sem expressão
olhando fixos um papel que diz uma frase incompreensível
pelo menos para ti, que não foste parte dela
- porque não és tu parte de tudo aquilo também? -

mata-te lentamente o teu trabalho forçado
de processos de rotina podre
de baldes coloridos de plástico e aventais sujos
de carros empurrados e cabelo atado em nós
de sapatos baratos e conversas de circunstância

não era melhor nada disto ser tão real?
não era melhor se fossemos cegos à insistência
de tudo isto aos nossos olhos,
à nossa consciência pesada de todo um horizonte

ah... limpa com força toda a lembrança do uso das coisas
tu que trazes o amanhã sempre igual,
porque tiras de tudo a memória dos dias, o pó.
porque és assim concreta, eficaz,
mesmo quando não limpas bem,
mesmo quando és desleixada, incompetente?
sim,
deita-te a uma vida furtuita de sonhos momentâneos,
imagina o que eles fazem nas suas cadeiras de pele,
nos seus escritórios de vidro fechados de tudo,
falando uns com os outros numa linguagem que nunca
vais perceber, porque não queres perceber,
mas no sonho percebe-se tudo por uma névoa confusa
onde tudo é o mesmo enquanto coisa diluída nenhuma.
fará isto algum sentido absurdo?
e a ti quem te chama a atenção, tu pessoa-coisa-nenhuma,
sem chefe, sem hierarquia, mais que não seja uma noção
vaga de quem te assina um cheque esparso, coisa pouca,
mas mesmo assim muito no absurdo inimaginável de ser paga.
tens a noção física da tua obrigação,
no quotidiano em que te levantas demasiado cedo,
demasiado cedo para ser natural.
e mesmo assim continuas até que fiques velha,
sem ambição, sem ambição e por isso magnífica.
sem ambição e por isso melhor do que todos os outros,
todos os do escritório, que se enredam na sua própria imaginação,
pensando que podem evoluir para outra coisa qualquer,
quando não são nada já à partida de si próprios.

levanta, passa, enxagua, treme, sacode, alinha e deixa cair lentamente.
nos teus movimentos lineares caóticos haverá todo um universo verdadeiro.
o universo verdadeiro.
o único universo que faz sentido,
por não fazer sentido nenhum.

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