quinta-feira, abril 20, 2006

Ontem, o diário que não possuo, pela noite, apertei-o forte ao peito que hesitava.

"Não consigo dormir. Tenho de pensar em alguma coisa, alguma coisa que me faça dormir. Ou então aproveitar este tempo agora, este tempo de silêncio, no meio da escuridão. Está tudo tão calado meu Deus... um silêncio tão profundo, tão completo, sem presenças ou conjecturas.

Quando eu era miúdo eu brincava aqui em toda a volta da nossa casa. Não sei porque me lembrei disto agora. Será porque tenho medo de me esquecer? Um dia vou-me esquecer e agora é o momento ideal, porque talvez mais tarde não haja memória para um livro, um apontamento qualquer num papel perdido. Lembro-me agora. De brincar no terreno em frente da escola, de jogar baseball com bocados de madeira e às guerras nos pequenos montes que faziam a fronteira dos terrenos. O campo estava cheio de pedras e eu sentia as pontas quando corria. Havia relva depois de chover e lama. Uma Oliveira ao lado, antes de chegarmos à escola. Tiraram tudo quando eu não estava cá.

Mais perto da minha casa havia um conjunto de pedras enormes, que, num labirinto, faziam para o meu prazer, um conjunto de painéis de controlo de uma nave espacial. Não em lembro se era sempre eu que comandava, mas acho que sim. Sei que trocávamos de postos, que dávamos ordens uns aos outros.

Em certos dias do ano eu perseguia formigas de asas pela escarpa que hoje está tapada por um edificio de apartamentos, e que levava a um grau mais alto, que dava para ver cá para baixo, para a minha casa. Pelo caminho cortávamos canas e partiamos ervas altas e cheirava-se um cheiro forte a quimicos naturais, como se a natureza gritasse contra a nossa selvajaria inocente.

Um homem vivia ao lado da escola numa casa velha, com um muro alto e tinhamos medo dele e dos movimentos lentos do seu corpo na sua horta meio escondida. Por detrás da escola foi onde enterrámos o meu primeiro gato e eu chorei nessa noite, na minha cama, sozinho pela primeira vez, a morte. O ódio a quem o matou, ainda o sinto, forte.

Uam rua acima da escola havia um terreno plano, mas que descia levemente. Nele jogávamos futebol, todos juntos. Um dia estava a chover e caiu um relâmpago poucos metros acima de nós, ou mesmo ao lado, não sei. Sei que o estrondo foi gigantesco e que - sem palavras - fugimos todos a correr assustados para casa.

Mais acima, na mesma rua, estavam as oficinas. Nunca lá iamos, mas sabiamos que elas estavam lá. Sujas e com cheiro a óleo.

Depois da garagem da casa do meu melhor amigo na altura, estava o cemitério dos carros. Dois ou três carcaças, ainda com bancos e volantes, mas pouco mais. As molas saiam dos bancos e os volantes eram só quase ferro. Mas nós iamos para lá fingir que conduziamos os automóveis, em viagens alucinadas, não sei bem onde. Tenho a sensação que eu comandava tudo isto, mas também não me lembro bem se era mesmo assim.

Nos dias que ia treinar para o clube, fins de semana frios, cheirava os bolos acabados de fazer, na fábrica duas ruas antes. Ás vezes comiamos os bolos mesmo ali, saidos do forno. Havia uma pequena taberna, ou loja, no caminho, com o meu jogo de video preferido, o Kung Fu Master e rapazes mais velhos metiam-se comigo quando eu jogava, por eu não conseguir passar sempre do mesmo nível.

Um dia fiz uma defesa impossivel - eu jogava sempre à baliza - mas o meu pai não viu, estava longe, com os amigos dele. Sinto agora, como senti então, um resticio de desprezo pela atitude dele, pela sua falta de tacto e atenção. Outra vez puseranm-me ao ataque e eu fintei o melhor jogador da outra equipa, sem querer. Metia a mão à bola involuntariamente, porque não queria ser atacante, mas guarda redes.

Ao pé do cemitério, o terreno abandonado servia no tempo dos torneios como campo de futebol. Era mesmo ao lado do bairro dos pretos, mas isso não tinha nenhum significado, como tem agora para os adultos. Iamos para lá jogar e eu levava aquilo a sério, mas menos do que os treinadores. Um dia, num jogo oficial, uma bola passou mesmo ao pé do poste, estava eu à baliza, e eu não me fiz ao lance, porque sabia que não ia entrar. Chama-se golpe de vista e foi o mais perto que eu alguma vez me senti de Deus.

Era esta a minha infância. Isto e o cheiro a pão da outra fábrica aqui ao pé. A vivenda enorme do vizinho".

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