quinta-feira, janeiro 05, 2006

O Rapaz Selvagem do Ikea

António Davide, sentado na sua cadeira especial

«Nunca me hei-de esquecer daquele dia», diz António Davide, hoje com 24 anos, quando lhe perguntamos sobre a fatidica ocasião em que António se perdeu dos seus pais no Ikea.

«Foi na secção das cozinhas», diz Davide com os olhos enovoados pela emoção. «A minha mãe largou-me da mão e foi comprar duas dúzias de guardanapos a €1,99». «Acho que comecei a andar e quando dei por mim, já não estava nas cozinhas. Ainda tentei voltar para trás, mas no Ikea obrigam as pessoas a andar sempre em frente e eu nunca mais vi a minha mãe». Aqui, A. Davide começou incontrolavelmente a chorar, sentando-se obcecado na pequena cadeira, a sua "cadeira especial". «Sei que parece um bocado esquisito, mas quando era mais miúdo, há 8 ou 9 anos, eu sentava-me na cadeira à espera que a minha mãe passasse, mas nada, ela nunca passou...».

Nessa altura, António não estava tão apertado quando se sentava.

As esperanças infantis do rapaz foram lentamente esmorecendo.
Perguntamos-lhe como foi passar a infância no Ikea.
«Foi muito tramado minha senhora. Sabe que aqui só há cachorros suecos para comer. Eu à noite ia ao restaurante a agarrava-me aos restos, mas é complicado. Tenho sonhos todas as noites em que estou a conduzir um volvo em forma de salsicha e bato no Magnusson, que está no meio da estrada».

Como se safou sozinho? Os empregados nunca deram por ele? Onde dormia? Onde fazia as necessidades?
«Fazia de conta que ia com outras pessoas, ou então punha-me a brincar nos corredores e escondia-me nos armários. Os empregados são poucos e fazem o possível para não olhar para os clientes, por isso acho que nunca deram por mim. Dormir, era na secção das camas, claro, mas ia variando de noite para noite. Já agora, não aconselho comprarem aquela HEMNES de pinho a €176,90, porque passei ali os anos em que não controlava muito bem a bexiga. As necessidades eram mesmo nas casas de banho aqui do sitio».

Aprendeu a ler e a escrever? O que sabe do mundo exterior? E namoradas?
«Aprender a ler... no principio foi complicado. Eles têm aqui muitos livros, mas está tudo em sueco e aquilo é uma complicação. Demorei 3 anos a ler a minha primeira página, mas hoje já sou craque. Recomendo o Snörmakare Lekholm får en idé . Durante 2 anos pensei que era um livro angolano. Escrever, só sei com lápis. Do mundo exterior, só sei o que as pessoas vão comentando, ou então quando falam ao telemóvel e eu vou apanhando. Namoradas, foi quando eu tinha 18, encontrei uma rapariga e combinávamos sempre encontrarmo-nos aqui. Ela pensava que eu gostava muito de ir às compras, mas acabei por me chatear com ela, porque me criticava muito que nunca a levava a lado nenhum, mas eu vivia aqui no Ikea, não podia sair. Acho que ela pensa que eu sou gay, mas é verdade».

Mas há uma saída do Ikea, por estranho que possa parecer. Mas esse Eldorado, que A. Davide perseguiu durante 9 anos, sempre o iludiu.
«Eu ainda tentei, sabe. Nos primeiros anos andei um bom bocado, mas ficava cansado e depois deitava-me e quando acordava já não sabia para que lado era a saída. Em 1998, ainda cheguei à parte dos corredores, mas tive azar que apagaram as luzes e eu tive de voltar para trás, porque não se sabe que tipo de bichos há ali pela noite».

Histórias curiosas, ela sabe muitas. Compartilhou algumas.
«A maior parte do people não sabe dizer o nome da loja. Alguns estão ao telemóvel e põem-se a gritar que estão no Ikeia, no Ikaia, ou no Ikasa. Houve um senhor imigrante no Luxemburgo que veio fazer uma devolução e queria falar com o dono da loja, mas explicaram-lhe que o dono não morava aqui ao pé».

Com grande esforço, e com a ajuda de um mapa, 2 GPS, uma bússola, uma corda esticada e migalhas de pão, conseguimos levar o Davide para a saída do IKEA. Foi um momento emocionante, quando o miúdo, agora homem, finalmente viu a luz ao fim do túnel que foi o seu isolamento forçado do mundo.
«Hey, está ali a minha mãe!».

A última visão que reportamos foi a de Davide a correr para a mãe que estava a pagar na caixa. O rapaz de camisa de alças e calções, com a sua cadeira debaixo do braço correu para ela e abraçou-a. Mas a senhora começou a bater-lhe com a mala, provavelmente por não o reconhecer, depois de passados tantos anos. Aos gritos «Mãe! Mãe!», a mãe de Davide pareceu chamar pela segurança e o Davide foi levado, não sem alguma violência, pelos seguranças amarelos da grande superfície, para dentro de um Volvo da PSP, para nunca mais ser visto.

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