quarta-feira, novembro 30, 2005

Fernando Pessoa morreu há 70 anos

Fernando Pessoa


Foi no Hospital de S. Luís dos Franceses, em Lisboa, num Sábado à noite.

Diz-se que a última coisa que fez foi pedir pelos óculos, como Goethe ao morrer pedia mais luz. Pouco antes havia murmurado a frase: "Amanhã a estas horas onde estarei?".

Eu gosto do Pessoa desde que comecei a gostar de filosofia. Talvez por isso a minha viagem na vida dele tenha tido um significado mais profundo do que só a leitura do que ele escreveu. Ele era um filósofo frustrado, essencialmente um homem em busca do mistério dos mistérios, o santo dos santos do conhecimento. A poesia era apenas a sua linguagem-mãe.

Claro que hoje em dia ninguém se importa com o sofrimento porque passa um homem destes. Há estudos sobre o alcoolismo, um deles bastante famoso pela sua brutalidade, também há quem fale da esquizofrenia, da demência, outros falam ainda das tendências homosexuais latentes, falam do "virgem negra", atacado pelo síndrome de edipo misturado com sentimentos de perda de identidade. E isto são só os estudos bem intencionados.

Há quem pretenda entendê-lo a um nível que ele próprio se ignorava.
Claro está que ninguém analisa em si mesmo, pelo menos a este nível, as suas degenerências, as suas falhas humanas, os vícios e os defeitos naturais. É absurdo querer definir o génio pelas suas quebras, o texto pela largura das margens.

Passados 70 anos, houve só uma biografia honesta. Chama-se "Um Fernando Pessoa", e foi escrita pelo Agostinho da Silva. É honesta porque é despretenciosa, simples. Agostinho da Silva não pretende desvendar o alcoótra, homosexual, orfão de uma mãe ausente, mas somente o homem que escreve. Pega na sua obra e nas suas identidades dolorosas e desenrola o missal do seu delírio de cores. No final coloca uma selecção de poemas, sintética, horrivelmente curta, como o alcóol puro que o matou. Final.

Outros sentiram a necessidade de ir mais longe, de conspurcar o oráculo com a sua presença. Seguiram o cheiro da sua cobiça na descoberta. Alguns, como António Quadros, tiveram a mão no ouro, os dedos grossos sobre a platina, mas confundiram o seu desejo de riqueza com a simplicidade de uma vida sofrida. Casais Monteiro, Pina Coelho, Dalila da Costa, Prado Coelho, Eduardo Lourenço, Jorge de Sena... todos tentaram. Um rol de almas talentosas, alguns prodigiosos, mas sem sucesso.

Uma busca no Google basta para ver que o erro continua.
- Há uma tertúlia na Almedina, pela sobrinha de Pessoa.
- Uma conferência no Goethe Institut sobre a influência dos poetas alemães em Pessoa

Tudo coisas boas, em prol da literatura.

Quando por homenagem, se deviam deixar ao silêncio, como Luis de Montalvor ao pé da sepultura disse: "Duas palavras sobre o trânsito mortal de Fernando Pessoa.
Para ele chegam duas palavras, ou nenhumas. Preferível fora o silêncio, o silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito"


Talvez seja só uma coisa minha, de ressentimento.

É que eu acreditei vislumbrar o horror de escrever coisas daquelas, coisas cruas daquelas. Acreditei vislumbrar as razões ocultas de inventar outras vidas, outras realidades, só para não ter de ser esta realidade. Razões de terror, de ignomínia, de desespero.

Como ele disse, há que viver para recusar.

Pensava ele em Cristo, penso eu em Fernando.

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