quarta-feira, agosto 04, 2004

Nunca

Não sei quem disse isto antes. Lembro-me de querer estar assim, pobre mas em deslumbramento. Um abandono da minha alma no meu corpo, deixado sozinho, mas contente no silêncio de apenas ser, sem ter de pensar.

Sei de ossos finos, carne clara, escurecida pelo sol.
Um grande deserto frio à noite, com sombras que voam alto a ignorar quem dorme inocente.
Sei de um lago seco, de uma cidade perdida, de familias já só pó, de esperança já só vento...

Porque sonha o Califa no seu palácio debroado a ouro?
Não sabem os Califas que o sonho é de quem não se rodeia daquilo que faz os sonhos?
Eu estou pobre na rua. Pedinte ignoto. Não interessa quem eu sou, mas apenas o que eu faço com a minha condição. Nunca interessa quem se é, apenas o que se quer fazer. E eu sou o Califa nos meus sonhos de mim. Ergo na minha pobreza o sonho irreal de puder ser tudo, uma brisa quente na pele, a superficie da água calma, a ponta de uma asa em voo e olhos claros.

Da minha esquina do mundo, regressam dolorosos todos os medos.
Quem passa e me olha com pena, não sabe sonhar. E todos os que passam me olham com pena, mesmo não olhando.
Mas eu não sou quem pareço. Como pensam poder ver a minha condição?

Nas portas do palácio real, dois guardas seguram cruzadas sobre o peito as espadas curvas da meia lua, debaixo das palmeiras verde-crú. As minhas roupas e a minha inconsciência guardam em mim a minha condição de olhos menos nobres.

Diz-me tu estranho de uma terra estranha, corpo que caminha sem destino para onde ir ou vontade de lá chegar: porque olhas com pena para um corpo fraco deitado no chão, meio-coberto de panos castanhos rasgados por roupa?

Nunca ninguém vai compreender.
Nunca se pode vislumbrar uma condição.
Nunca. Se tu não fizeres de ti o teu corpo e a tua alma.


Comments:

Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?