terça-feira, junho 08, 2004

Povoação deixada aos lobos

Povoação deixada aos lobos
(por inspiração deliberada de Cesariny)

seis horas, digo seis não sete depois do último habitante ter partido
para a França dos mortos, paraíso da igreja, inferno dos pecados
a taberna fechou a porta sonoramente, com um ruído de machado a enterrar-se.
Com a penumbra,
Vieram os lobos em matilha.
Primeiro o mais velho, que ficou onde era a câmara
Depois os outros,
Por hierarquia nunca estabelecida
Ocupando as ruas,
Uma a uma,
Até todas as casas terem luz novamente,
Terem novamente uma familia ocupante.
O lobo presidente uivou regulamentos
Os outros reuniram-se em procissão e levavam coelhos em corsos ridiculos
Mortos com e sem pele e com e sem entranhas.
De manhã os lobinhos iam à escola.
De tarde os lobos chegavam da caça e iam para a taberna,
Tinha um arrancado o machado com os dentes
Atirando-o para a calçada de xisto polido
Com um expirar profundo de cansaço e ódio,
pó de água nas narinas velhas.
Um dia veio ainda o carteiro enganado.
Fizeram-lhe uma embuscada
Mas deixaram-no fugir sem um braço
Com as cartas a cair da mala descosida.
Nas noites de lua cheia
O presidente uivava o recolher obrigatório
Chamava os jovens ao sacrificio
Vinham todos arrastando as patas
Mordendo com a disciplina as mulheres.
Secos, deslumbrantes,
Os seus gritos ouviam-se pelas montanhas,
Acordavam aldeias distantes do seu sono tranquilo.
Com a emoção
Nessa noite os lobinhos não dormiam
Nas suas camas de palha
Já a pensar na próxima lua cheia.
Até ao dia
Em que vieram os caçadores
Em busca de prémio
Em busca de vingança por nada
Em busca de almas selvagens.

Fizeram-lhes embuscada.
Não havia esta história de acabar mal.
Embuscada, sim senhor.
Deixaram-nos fugir como o carteiro
Com um braço
Mas não com o mesmo,
Com o esquerdo,
Que o direito segura a espingarda,
Que o direito a carrega de cartuchos,
De chumbo e malicia.



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