quinta-feira, junho 03, 2004

Fragmentos de luz

Apetece-me ser poético.
Ter o corpo doente caído no chão de pedra e acordar num solavanco para a torrente de luz que se ergue dominadora ao descer.
Bilhete obliterado no espanto de haver um autocarro para o desterro, sem saber que tiranos e poetas o tomaram antes de mim.
O meu coração tem o número 23 quando começa a sonhar. Tudo em mim se emociona quando me imagino perdido, nas cores, no chão duro, numa avenida de pedra que sobe sem limite nos vitrais iluminados.
Repousa no altar de mim as tuas esperanças, mulher obtusa e negra, de um jade mascado, açucar sem sabor, sentidos encurralados na esperança. Entrega a tua fé como quem condena os filhos, cegando-se pela ambição da promessa.
O teu Deus não te vai ignorar, se ao menos te humilhares a seus pés, com sinceridade. Mas tens de sucumbir realmente. Que não se adivinhe na tua pele arrependimento.
Os meus olhos doces têm uma raiva que repousa, dormente.
Dá-me a tua mão debaixo do calor do sol. Nesta floresta de luz nada é realmente o que parece. Corsos alados saltam dos vitrais em festins de cor. Alimentam-se do teu medo, sorvendo-o delicadamente, esperando uma caricia.
Quero que te sintas impotente para descrever a alguém o que aqui se passa, de como tudo é demasiado importante para ser pensado. Sente-te dominada, fraca, uma cama de palha que recebe um corpo cansado. Podes resistir, mas não tens de resistir.
Dá os teus braços em Cristo e espera pelo perdão. Sê como Cristo iludido. Como Cristo tormento na carne. Como Cristo infantil.
As cores caiem sobre mim como uma chuva suave depois da desgraça.
Como depois da desgraça que nos atacou a todos sem aviso. É uma chuva fraca que não tem significado.

Lembro-me de ter entrado aqui, mas não me vou lembrar de tudo o resto.
Há uma névoa anil em todos os meus sentimentos dormentes.
Queria ser altar alto e rendilhado, no orgulho soturno de uma dedicação sem limites ao impossível. Largado sempre à preocupação da cera que se consome e que crepita o relógio incerto da sua vida terna e pobre.
Queria ser colunata anónima fora da luz, para ver de longe a peregrinação e fechar os olhos para o som dos pés descalços e das preces.
Queria ser todos os homens e nos corações ser todos os medos e nos medos ser todos os remédios.
Queria sentir em altitude e repousar em profundidade. Tomar nas mãos os recém-nascidos para os abençoar na àgua e deitar no cenotáfio-sempre-o-mesmo o corpo daqueles que partiam inesperadamente.
Queria sentir em pétala os fotões de mim, saboreá-los pela cores e deitar na lingua serenamente cada um pela sua qualidade essencial e pura.
Degustar pela rama os mistérios da solidão e do amor para os pôr em livro aberto de orações, fora do alcance de todos, para lá da escuridão da nave principal.
Num momento de loucura, estar enterrado vivo só com o primeiro nome debaixo da laje de pedra gasta pelos pés de 40 gerações.
Sentir um sorriso falso por ver uma cara alegre.
Sentir um sorriso verdadeiro, quando começasse a chover sem piedade. Sentindo as reentrâncias das paredes ao ouvir as gotas pesadas no alcatrão lá fora, sempre sem olhar.

Ser pequeno em todas as ocasiões. Humilde.
Mas maior do que o Mundo e a Realidade, sentindo não chegar para ambas.

Haver um tempo para o peito preso, para hesitar.
Um tempo para a sinceridade sem pedir nada em troca.

Um tempo para a luz.



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