terça-feira, março 30, 2004

Há uma cidade no mar

Dias há, em que me dá para sonhar assim.
(Há eternidade em tudo, até Universo na Rua dos Douradores)

"Há uma cidade no mar. Prédios ao sabor das vagas, no tépido movimento dos seus cascos brancos. As cordas que me seguram à vida são passadas pelas mãos rugosas do destino, no ruído horrível e cadenciado do seus olhos de sangue. Há uma cidade imensa, sem ruas, no leito daquele oceano feito de margens demasiado distantes uma da outra... ahhhh apetece-me sonhar, ao olhar para o vazio no horizonte. Uma cidade em chamas... no mar... prédios altos, tombados... uns como os outros, oscilando o pêndulo da desgraça maritima sem tempestade, sem socorro possível, abandonados terminalmente à sua sorte de náufragos da minha imaginação doentia. Há tantas coisas onde não há coisa nenhuma, ao menos acordasses do teu sonho lúcido, irmão, ao menos irmã, fugisses do sol que te esvazia a liberdade. Pega nas tuas coisas e corre até ficares sem fôlego e que a tua corrida seja infantil como um sorriso de braços abertos na direcção de quem te ama, não penses nunca em parar. Há tantas coisas, onde não há coisa nenhuma... cidades inteiras, no meio daquele mar furioso, onde está parado o mesmo barco, desafiante, a brilhar. Ao redor, grandes desgraças e o encantamento do fim, de não se poder lutar por mais nada, só olhar. Que pena tenho dos vencedores, de quem nunca se deixou derrotar, como a metrópole que mais ninguém vê e que me ocupa a atenção, parado, sem falar... ela tem a nobreza de ser minha, de mais ninguém, a nobreza de deixar de existir quando eu fechar os olhos. Há tantas coisas... onde não há coisa nenhuma... como te podes sentir pobre, anónimo, desesperado...? Há felicidade até em desistir, em virar as costas à recompensa, irmão da carne, irmã do martirio. Pelas correntes a Sul, desce uma grande estrada sem estar marcada, percorrida por pés que nunca a tocam, que carregam colares e truques de beduinos nos sacos com pó e eles sabem tudo sobre o mundo, leram do Livro da Vida, arrancando as páginas que sabiam a sal. Não sei porque te escrevo tudo isto, quando me doem os olhos. Quando me imagino a tremer ao frio. Só queria que soubesses que há coisas onde não há coisa nenhuma... que... há uma grande... enorme... bela... desconhecida... inacessivel cidade no mar..."

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