quarta-feira, fevereiro 04, 2004

Uma folha vermelha a cair

Mil anos fora. Da viagem regressado.
A minha casa velha, como nova à minha espera.
Uma folha vermelha a cair…
Alegre enfim, de deixar de estar torturado, por memórias revoltas da minha família.
Ali mais à frente, cuidando de algo está alguém que eu conheço de outra vida. É meu amigo antigo, decerto lembrar-se-á de quem eu era.
Eu que deixei uma família à espera.
Uma folha vermelha a cair…
Olhou-me com olhos tristes ao ver-me.
- Tu por aqui? - disse-me sem mais.
- Sou eu, é verdade. E a minha família como vai?
Ele explicou-me do sucedido com extremo cuidado, como se conta a noticia de uma morte ao familiar alheio a tudo o que se passou. De como eu estivera mil anos fora, de como se lembrava de mim numa outra vida passada.
- Eles esperaram por ti o que puderam…
E eu nada disse olhando o vazio.
Uma folha vermelha a cair…
- Lá numa janela altiva, uma senhora de cabelos de fogo olhava o horizonte à tua procura todos os serões! Cá em baixo os animais revoltos perdiam o teu cheiro a cada dia que passava! Os meninos cresciam esquecendo-se de quem tu eras!
- Tive de partir…
- E eles tiveram de esquecer-te! - disse-me sem piedade.
- E agora?
Levou-me pelas escadas da casa milenar. Subimos com cuidado os degraus de pedra, polidos pelo andar de gerações. Ao cimo das escadas estava o quarto que eu deixara.
- E ela? - perguntei.
- Esperou por ti. Envelheceu nessa espera, penteando os longos cabelos de fogo, fitando o horizonte.
- Outros mil anos levarei a perdoar-me!
Lá fora o vento assobia furioso.
Uma folha vermelha a cair…
- A minha filha?
- Saída à muito desta casa, envelhecida também ela sem memórias tuas ou saudades. Nela crescendo uma revolta de partires causando-lhe tamanha dor.
- A minha menina…
Uma folha vermelha a cair…
- O meu filho?
- Perdido no combate por ódio da tua partida. Achando-se apenas ai útil, tentando demonstrar-te a sua coragem. Como era já um homem!
Uma folha vermelha a cair…
Lá fora a tempestade ruge num grito de desespero que é também o meu. Mas em verdade, estando fora mil anos, nada perdi. O meu filho não é um homem. A minha menina não é uma mulher. A minha mulher escova ainda, absorta de tudo, o seu cabelo de fogo.
- E tu? - disse voltando-me para o meu velho amigo.
Mas ele já não estava lá.
A casa milenar entretanto tremia com o vento forte que nascera lá fora, como que repelindo também ela as memórias que tivesse de mim. Eu, o estranho! Eu, o renegado!
O vento fustiga as paredes de pedra gasta. As árvores sacodem com a chuva pesada. Vejo, a custo, numa outra casa distante uma família reunida por uma sala iluminada.
Uma folha vermelha a cair…
Na minha casa não há luz ou calor. Mas uma figura feminina meneia o cabelo longo cor de fogo. Uma menina corre agarrando as tranças e gritando contra o seu irmão que a persegue tentando alcançá-las.
Enquanto aconchego o casaco corroído pelo tempo, por entre os cabelos brancos, afasto-me da minha casa milenar por entre longos piscar de olhos. Em cada um, um relâmpago e uma lembrança de uma outra vida.
Ao longe, numa janela fustigada pelo vento, uma mulher com cabelos de fogo faz-me adeus carinhosamente. Os miúdos gritam o meu nome.
Uma folha vermelha a cair…


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